Alienação e separação: o papel do psicanalista nas escolhas subjetivas

Toda compreensão e tratamento dado às questões relativas às moradias populares, as chamadas favelas, se pautam na idéia de falta e carência. Segundo essa visão estereotipada, a população das favelas, por estar privada de boas condições de serviços básicos como saneamento, energia elétrica, pavimentação, segurança, justiça e educação, seria também carente de valores cívicos como respeito, integridade, honestidade e disciplina. Por estas razões, a favela é retratada como meio dominado pela desordem, pelo banditismo e pela desgraça.

Assim, o que vemos é a veiculação de uma identidade “favelado”, adjetivada ora como “carente” e ora como “bandido”. E já que o que está em circulação na mídia e na sociedade como um todo, o que nos é oferecido pela cultura, tem relação direta com o que nós somos, os próprios moradores das favelas acabam por construir sua subjetividade influenciados por essa identidade.

A pesquisa “Aplicações da psicanálise no tratamento da violência cotidiana” utiliza como material clínico o trabalho do Digaí-Maré, um núcleo de atendimento psicanalítico em grupo no Complexo da Maré, de orientação lacaniana e vinculado ao Programa de Criança Petrobrás da ONG CEASM (Centro de estudos e Ações Solidárias da Maré).
Utilizarei os conceitos de alienação e separação para falar das possibilidades de atuação do psicanalista na escolha subjetiva, que permite a cada sujeito o descolamento de uma identidade majoritária.

A alienação diz respeito à inserção de cada um na Cultura, isto é, na linguagem, já que não existe ser fora da linguagem. Esse resto do qual falamos acima, apesar de não ser nomeável, não está propriamente fora da linguagem, já que para um ser de linguagem o que está fora da linguagem não existe. Porém, podemos dizer que está mais próximo de um núcleo de Sujeito (“sujeito” com letra maiúscula porque diz respeito ao que há de mais estranho, de mais singular e inominável em cada um). Assim, há mais alienação quanto mais se caminha em direção à Cultura, quanto mais se é recoberto pelos significantes da linguagem. Do outro lado, quanto mais se caminha para esse núcleo de Sujeito, que a linguagem não alcança com tanta eficácia, há mais separação (da cultura).

Há uma dialética importante entre alienação e separação. Não é possível, como demonstramos, estar completamente alienado e tampouco totalmente separado, essas duas operações nos são constituintes. Podemos localizar em termos de alienação a “cola” dos moradores de favelas aos significantes de banditismo e/ou carência que os descrevem a partir da mídia. Muitas pessoas acabam por criar uma maneira de viver em função desses nomes, ainda que não façam parte do tráfico e nem passem fome, que seriam os dois extremos dessas identidades.

Um exemplo é o caso de Vitor (nome fictício), que chegou ao grupo do Digaí-Maré falando de seu comportamento violento, de seus atos impulsivos, do uso da força para controlar sua família e da lei que ele impunha a sua filha através da violência. Vitor não cansava de marcar que na favela tem que ser assim, dando exemplos da lei do “olho por olho, dente por dente” que seria característica deste ambiente. “Se ela [a filha] não aprender assim dentro de casa vai ter que aprender na rua, o que é bem pior”, diz Vitor.

A partir desse exemplo, podemos pensar em duas estratégias possíveis para esse caso: a interpretação para a busca de sentido e a investigação da maneira como o sujeito obtém algum prazer com isso. Cada identidade apresentada pelo sujeito tem um aspecto de sofrimento, que o faz procurar ajuda, e um aspecto de prazer, que o faz fixar-se a ela.
Podemos dizer que o primeiro modo de interpretação fica apenas no registro da alienação, pois vai perseguindo os significantes em busca de sentido, sempre localizando as relações entre eles na Cultura. O segundo modo traz algo de novo, pois dá lugar ao não-sentido, os modos de gozo de cada um, que não são localizáveis em termos de alienação.

De acordo com LAURENT (1997), “a alienação (isto é, o fato de que o sujeito, não tendo identidade, tenha de identificar-se a algo), encobre ou negligencia o fato de que, num sentido mais profundo, o sujeito se define não apenas na cadeia significante mas, no nível das pulsões, em termos de seu gozo em relação ao Outro” [1].

Assim, após fazer o trabalho de rastreamento dos sentidos, a análise chega a um ponto de não-sentido, inominável, que corresponderia ao resto – ao furo já mencionado – da relação do sujeito com a Cultura. Nesse momento há um certo efeito de separação. Ainda segundo o autor, “… o verdadeiro sentido que a interpretação analítica deve passar não é um efeito de sentido, mas antes o produto ou resto do primeiro encontro entre o sujeito e o Outro – o resto daquela experiência, das Erlebnis em termos freudianos, o resto do gozo” [2].

A pesquisa “Aplicações da psicanálise no tratamento da violência cotidiana” recolhe seu material clínico a partir dos atendimentos do Digaí-Maré, descrito acima. Minha pesquisa pessoal buscou investigar as possibilidades de atuação do psicanalista nas escolhas subjetivas de cada um, para além das determinações sociais.

Aproximando isso do tema da pesquisa, podemos dizer que cada morador da favela vai ter uma maneira diferente de se identificar com os significantes que lhe são oferecidos e que lhe nomeiam, como “bandido” ou “carente”. Essas identidades vão ter sentidos diferentes para cada um, mas, acima de tudo, cada um vai ter um modo de viver e se utilizar delas diferente, que não passa pelo sentido. É preciso chegar perto desse núcleo que determina cada modo de viver para que, a partir do encontro com o não-sentido, se possa produzir um novo sentido para ele.

Em outras palavras, no momento em que o sujeito está absolutamente colado a uma identidade, o analista pode ajudar a criar um intervalo entre eles (e a noção de intervalo combina com a idéia de separação) para que ele possa manejá-la de uma maneira mais plástica e mais favorável.