A aprendizagem e seus impasses*

Por que algumas crianças apresentam dificuldades na aprendizagem? Cada criança responde à sua maneira aos impasses que vão se dando no encontro com os outros e na relação com o mundo, e essas respostas vão levando a novos impasses que requerem novas invenções. A história de uma criança é construída a partir de aproximações e distanciamentos na relação com seus pais, que vão da dependência absoluta rumo à independência. Há alguns momentos importantes em que é preciso poder prescindir dos pais para inventar novas formas de se relacionar com eles. A relação da criança e do adolescente com a escola acompanha esse desenvolvimento lógico, já que esse é um espaço muito importante de relação da criança com o mundo social.Veremos algumas das passagens vividas pelas crianças e como elas podem chegar a interferir no ambiente escolar. Porém, frisamos que estas passagens não se dão de forma linear e são particulares de cada sujeito.

Num primeiro momento, os pais são o centro do mundo para as crianças. A entrada na escola é uma importante separação, quando se inicia uma expansão da noção de família e começam a se ampliar as formas de se relacionar. A partir daí, a criança de fato começa a estabelecer vínculos extra-familiares. Desperta-se uma grande curiosidade sobre as relações entre os sexos, principalmente no que se refere à sua origem, perguntam-se “de onde eu vim?”.

É possível que essas perguntas tomem a criança de tal maneira que seu interesse não pode se voltar para outras coisas, como o aprendizado escolar. Na relação com o próprio corpo, é preciso que a criança não esteja tão presa aos prazeres e desprazeres que possam gerar suas vivencias corporais, e que possa simbolizar esta curiosidade, de modo a usá-la para a busca de saber em geral. Assim, o enigma inicial se transforma em desejo de saber.

O interesse que estava voltado para o mundo interior volta-se para o mundo exterior. Agora seus próprios recursos permitem uma independência maior dos adultos, o que provoca também mudanças na relação com seus pais. Elas começam a perceber que nem todas as famílias funcionam da mesma forma, o que pode aparecer nos questionamentos quanto a regras e normas. A partir daí, a criança começa a se instrumentalizar para fazer suas próprias escolhas, para passar de um sujeito apenas falado por sua família para alguém capaz de falar de si mesmo, de fazer escolhas e se responsabilizar por quem é.

A família dá lugar, então, à escola e à relação entre seus pares como o centro das atenções dos jovens A professora deixa de ser uma substituta dos cuidados maternos para ser aquela que ensina. Se já não é mais uma criancinha dependente, tampouco é ainda um adolescente mais independente. Isso gera sentimentos conflitantes, na descoberta de que ao aprender algo mais complexo, é preciso deixar para trás o que é conhecido e confortante. Ao mesmo tempo precisa que a família seja seu porto-seguro para onde retornará a cada nova exploração.

Neste ponto, a inclusão em um grupo torna-se muito importante, pois isso garante seu lugar fora de casa, longe da proteção de seus pais. Ao fazer parte de um grupo, é preciso parecer com ele, destacar-se muitas vezes é correr o risco de perder a condição de membro deste. Ser rejeitado do grupo neste momento é muito. Cada grupo tem sua linguagem e códigos próprios que o ajudam a criar uma barreira entre os grupos e entre pais e filhos.

A configuração dos indivíduos em um grupo faz com que passem a agir, pensar e sentir de uma maneira muito diferente da qual agiriam individualmente e isolados. Essa nova configuração permite não só possibilidades de identificação com seus pares, como também uma situação de proteção e acolhimento, diferente da família, e a partir da qual ele se sentirá confortável para fazer suas escolhas.

A escola é muitas vezes o grande palco onde se representam as relações de um grupo, que implicam necessariamente em movimentos de inclusão e exclusão. Nesse sentido, o tão debatido fenômeno do bullying é, em certa medida, condição da própria existência do grupo. Porém, quando o grupo não é organizado por um ideal que permita traçar seus limites e suas regras internas, o bullying pode assumir formas cada vez mais violentas de aparição, diante das quais os adultos não podem se omitir. É preciso que o papel que o sujeito assume no grupo não o tome por completo e que não diga totalmente quem ele é. É preciso uma certa descrença em seu papel para permitir seu interesse pelo saber também fora dele. Seja a posição de hostilizado ou de líder, colar-se a ela desapropria a escola de seu papel de fonte de saber.

Como vimos na descrição acima, o desenvolvimento infantil é feito de impasses, escolhas, separações e invenções. Também o desenvolvimento escolar se constrói desta maneira descontínua, onde fatores do desenvolvimento sexual infantil, das relações intra-familiares e das relações sociais se mostram amarradas. As dificuldades que podem aparecer na aprendizagem em cada momento são distintas. Fatores contingenciais da vida da criança podem causar impasses nos momentos lógicos apresentados acima, desafios muito difíceis de resolver. Algumas vezes não são os pais as pessoas mais indicadas para ajudar a criança, pois é justamente na família que está a dificuldade. Nesses casos, é preciso que a criança possa ter seu ponto de vista escutado, pois é só a partir dele que ela poderá inventar soluções para seus problemas.

*Este artigo foi produzido originalmente para uma palestra oferecida a uma escola, em colaboração com Flavia Gancz Kaczala e Priscila Segal.